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Quando o luto encontra acolhimento: a rede de apoio que conforta

Iniciativas como o NEPAL ajudam enlutados a atravessar a dor, mostrando que falar sobre a morte é também falar sobre vida

Quinta-feira, 20 Novembro de 2025 - 07:00 | Luiza Ferraz


Quando o luto encontra acolhimento: a rede de apoio que conforta
O projeto NEPAL acontece todos os sábados ás 14h no Multiuso 2 da UFMS. (Foto: Luciano Muta)

Lidar com a morte nunca é simples. Para alguns, a perda chega de forma inesperada; para outros, ela se aproxima lentamente, anunciada por longas internações e incertezas difíceis de enfrentar. Mas, independentemente do contexto, o luto permanece como uma experiência humana universal, ainda cercada de silêncios, estigmas e falta de compreensão. Em Mato Grosso do Sul, um grupo tem trabalhado para mudar essa realidade: o Núcleo de Estudo e Pesquisa em Luto (NEPAL), ligado ao Hospital Universitário (HU) e à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). 

Criado para suprir uma lacuna histórica no estado, o NEPAL nasceu da percepção do teólogo, filósofo e psicólogo Edilson dos Reis de que não havia, nas universidades da região, um espaço dedicado exclusivamente ao estudo do luto e ao acolhimento de pessoas enlutadas. O objetivo do núcleo é oferecer apoio, desenvolver pesquisas e tornar o HU e a UFMS referências regionais sobre o tema.

Quando o luto encontra acolhimento
Edilson Reis, responsável pelo projeto Nepal. (Foto: Anna Bruschi)

O que é o luto e por que ele exige atenção 

A psicóloga Suzana Barros, especialista em luto e perdas, explica que o processo começa sempre que ocorre a ruptura de um vínculo afetivo. Segundo ela, o luto é uma reação natural à perda de alguém ou algo que se ama. Pode acontecer após a morte de um familiar, de um animal de estimação, de um relacionamento ou até mesmo de uma rotina construída ao longo de muitos anos, como no caso da aposentadoria.

Quando o luto encontra acolhimento
Suzana Barros, psicóloga especialista em luto. (Foto: Anna Bruschi)

Suzana afirma que o luto é um momento de reorganização da vida sem a presença da pessoa amada. A ausência muda a dinâmica familiar, emocional e até financeira. Embora seja um processo esperado e, na maioria das vezes, vivido naturalmente, alguns casos se tornam mais difíceis de enfrentar. Isso depende da personalidade, das experiências anteriores e das dores acumuladas ao longo da vida.

Ela destaca que a psicoterapia não tem o objetivo de eliminar a dor, porque a perda de um ente querido gera uma ferida permanente. O trabalho terapêutico ajuda a pessoa a atravessar o processo sem perder de vista a própria vida. De acordo com a psicóloga, a memória permanece, mas não deve impedir o indivíduo de continuar caminhando. Para Suzana, o tratamento busca “que a memória fique guardada em um lugar especial, mas que a vida também possa seguir”.

O papel do NEPAL no acolhimento às perdas 

Uma das principais iniciativas do núcleo é o grupo de apoio ao luto, que se tornou um ponto de encontro para pessoas que buscam um espaço seguro para falar sobre suas dores. O grupo atende, sobretudo, familiares e amigos que enfrentam o luto por suicídio, conhecido como pósvenção.

Gleidivana Modesto, auxiliar de cozinha, chegou ao NEPAL após perder o filho. Ela conta que, nos primeiros meses, sentia apenas uma dor profunda e avassaladora. Encaminhada ao grupo no mesmo dia do falecimento, encontrou ali um espaço de acolhimento e escuta que a impediu, segundo ela, de colocar a própria vida em risco. Gleidivana descreve que o luto não é apenas saudade, mas ausência, um vazio que se acentua em datas comemorativas e nos pequenos detalhes da rotina.

Participar do grupo ajudou-a a reconhecer que não estava sozinha e que compartilhar a dor permitia respirar novamente. Para ela, ouvir outras histórias e ser ouvida traz força e alívio.

A formação de quem cuida 

O NEPAL se tornou também um espaço de formação para estudantes de áreas como Psicologia, Medicina e Enfermagem. O contato direto com pessoas enlutadas permite que futuros profissionais desenvolvam habilidades de escuta, empatia e acolhimento, aspectos fundamentais para quem atua com sofrimento emocional.

Essa necessidade aparece reforçada na pesquisa apresentada no Integra UFMS pelas estudantes Mariana Tainá Pinto Souza, Thauany dos Santos de Ataíde Silva e Muriel Picon Soares, sob coordenação de Edilson dos Reis. O estudo identifica que, apesar de o luto estar presente em diversas áreas da saúde, ele ainda é tratado como tabu na formação acadêmica. As autoras defendem que a universidade precisa incluir o tema de forma mais estruturada, preparando os estudantes para lidar com a morte com sensibilidade e profissionalismo.

Preconceitos e desafios dentro da universidade 

Apesar dos avanços, o projeto ainda enfrenta resistências. Segundo Edilson dos Reis, parte do preconceito surge da crença equivocada de que o NEPAL teria caráter religioso. O núcleo, no entanto, atua com base científica e se fundamenta em práticas reconhecidas internacionalmente, como a livre associação e o compartilhamento de experiências. 

Mesmo assim, o grupo se fortalece e amplia suas ações. Hoje, recebe participantes de várias cidades do estado, como Aquidauana, Dourados e Sidrolândia. Também desenvolve pesquisas sobre diferentes formas de luto, como o vivido por filhos de vítimas de feminicídio, por famílias que autorizam doações de órgãos e tecidos e pela população idosa que enfrenta solidão.

Quando o luto é silencioso 

Nem todos os enlutados contam com acompanhamento psicológico. João Pedro, estudante, perdeu a mãe há quase dois anos e tenta atravessar esse processo sem apoio profissional. Ele relata que interrompeu a terapia e os medicamentos, além de ter dificuldade em falar sobre sua dor. Para ele, o acolhimento da companheira tem sido necessário para aliviar o peso emocional, mas a ausência de apoio especializado torna o processo mais solitário.

Carlos Alberto Loosli, voluntário do NEPAL, explica que a forma como cada pessoa vivencia o luto depende de suas características emocionais e das experiências acumuladas ao longo da vida. Ele afirma que perdas anteriores podem influenciar a maneira como alguém enfrenta uma nova ruptura afetiva, tornando o processo mais leve ou mais doloroso. Para Carlos, a presença de uma rede de apoio é decisiva para evitar que a pessoa se afaste da própria vida.

Quando o luto encontra acolhimento
Carlos Alberto Loosli, voluntário do projeto Nepal. (Foto: Anna Bruschi)

Falar sobre a morte é falar sobre cuidado 

Especialistas apontam que a sociedade contemporânea evita conversar sobre a morte, como se o silêncio fosse capaz de anulá-la. Essa postura, porém, dificulta o enfrentamento do luto e pode aprofundar sintomas emocionais e físicos. A falta de espaços de escuta favorece o isolamento, a ansiedade e a depressão.

Iniciativas como o NEPAL mostram que acolher a dor do outro é um gesto de humanidade. Compartilhar histórias, ouvir e ser ouvido transforma o processo de luto em um caminho menos solitário. As pessoas descobrem que não estão sozinhas, que suas dores são legítimas e que a vida pode continuar, mesmo que de outro jeito.

Falar sobre luto é também falar sobre amor, sobre memória e sobre a capacidade de seguir adiante. É reconhecer que o sofrimento existe, mas que ele não precisa ser vivido em silêncio.

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