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Por Alanys, pelo respeito: homotransfobia é crime e gera condenações

Sentenças favoráveis obtidas pelo MPE mostram que nos últimos anos vem sendo possível a responsabilização de quem prática crimes de cunho homofóbico contra a população LGBTQIAPN+

Terça-feira, 01 Julho de 2025 - 08:00 | Redação


Por Alanys, pelo respeito: homotransfobia é crime e gera condenações
(Foto: MPMS)

No dia 14 de abril de 2020, a comunidade LGBTQIAPN+ em Mato Grosso do Sul, e, Brasil afora, viveu um dia de tristeza e desalento com a morte de Alanys Matheusa, aos 22 anos, de causas naturais. Desaparecia ali uma voz ativa, símbolo para muitos que tentam sair da borda de exclusão imposta pela arquitetura social. A jovem advogada, três anos antes, havia cravado um marco: fora a primeira mulher negra e trans a assegurar o direito de advogar no Estado, ao terminar o curso de Direito, em Campo Grande, e ser aprovada no exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Vítima de parada cardiorrespiratória decorrente de uma cardiopatia, Alanys levou consigo precocemente uma história de vitória contra as adversidades. Foi uma trajetória pela qual se transformou, ao mesmo tempo, na cara da representatividade para dois grupos de cidadãos alvos de preconceito e percalços cotidianos: as pessoas pretas e as transsexuais.

Não tinha como não ter se forjado uma ativista das duas causas. Sua perda, logo, provocou comoção e foi para o noticiário. Veio a emoção coletiva, o reconhecimento, o lamento, mas também os típicos comentários raivosos, transfóbicos, criminosos, em resumo. 

Em reportagem compartilhada na rede social de um jornal on-line campo-grandense, um motorista, hoje com 35 anos, deixou mensagens preconceituosas no período entre 14 de abril de 2020, quando a advogada morreu, e o dia 23 do mesmo mês.

A primeira mensagem continha a indagação: "Mulher?", seguida de emojis
A segunda mensagem fazia referência ao órgão genital masculino, com a expressão: "Mulher de penca", também seguida de emojis.
A terceira mensagem mencionava a impossibilidade de uma mulher trans engravidar, com um comentário depreciativo: "quando esse negócio de TRANS engravidar, eu chamo de mulher. No mais é só uma gambiarra".

É crime!

Como os tempos são outros, não ficou impune o preconceito sem filtro na rede social, algo tão comum na era da liberdade quase irrestrita no mundo virtual. A Promotoria de Justiça de Direitos Humanos em Campo Grande ajuizou ação penal contra o perpetrador das palavras, por crime de racismo, previsto na lei 7.716, de 1997. Seguiu-se a jurisprudência definida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), equiparando essa infração penal à LGBTfobia.

A denúncia foi protocolada em 1º de fevereiro de 2023.

“Não há que se falar, ademais, em liberdade de expressão da opinião preconceituosa ou discriminatória, porquanto, como qualquer outro direito fundamental, a liberdade de expressão não é ilimitada, consoante o entendimento jurisprudencial e doutrinário”, assinalou a denúncia assinada pelo Promotor de Justiça Paulo Zeni.

Ouvidas as partes, apresentadas as alegações finais da defesa e da acusação, registrou-se o veredito judicial, em 28 de março de 2024.

O réu foi condenado à pena de 2 anos, 1 mês de reclusão e ao pagamento de 11 dias multa, considerando para cada dia o valor de 1/30 avos do salário mínimo vigente.

“O teor das mensagens é evidentemente transfóbico, reiteradamente transfóbico e, ao meu sentir, cada uma delas, em ordem crescente, ainda mais ofensiva que a outra”, define a sentença da 1ª Vara Criminal de Campo Grande.

Assentindo com os argumentos elencados pelo MPMS, o juiz também destacou a gravidade da conduta:

“Não se pode e não se deve, seja pela razão que for, admitir atitudes que desprezem a diferença, promovam a intolerância e fomentem o resiliente discurso de ódio, que tantos males, sofrimentos e violências produzem contra os grupos mais vulnerabilizados”, diz o texto do julgado.

Injúria transfóbica via WhatsApp

Os meios digitais de comunicação, ao passo que revolucionam as formas de contato interpessoal, também são campo frutífero para os preconceituosos. A atuação do MPMS vem demonstrando, na prática, a necessidade de punir, na forma da lei, comportamentos criminosos, usando os rastros deixados como prova. E a mesma internet que virou palco de abusos virtuais, serve como repositório da comprovação de atos ilegais.

Exemplo disso é um outro processo, de 2023, no qual o Promotor de Justiça Paulo César Zeni apresentou denúncia em desfavor de uma pessoa de 23 anos por injúria qualificada, após enviar mensagens transfóbicas a uma mulher trans via WhatsApp, em meio a discussão sobre questões familiares.

As expressões foram interpretadas pelo juízo como ofensas à identidade de gênero da vítima, que utiliza nome social feminino. No diálogo virtual, ela é chamada pelo nome de registro, além de ser tratada no masculino com a frase "tio”, "nem mãe é".

Denominada como “deadnaming”, em referência ao uso do nome “morto”, essa prática é considerada uma agressão à identidade de gênero da pessoa atacada.

Segundo a peça acusatória, “o denunciado, conhecendo o nome social da vítima e com a intenção de ferir sua autoimagem – tanto que ao longo de toda a conversa referiu-se à vítima como (nome social), mudando o tratamento apenas após o desentendimento – intencionalmente dirigiu-se à vítima utilizando seu nome registral, externando o intuito de ofender sua honra subjetiva mediante emprego de elementos relacionados à sua identidade de gênero...”

Na avaliação do magistrado responsável por julgar o episódio, a mensagem configura injúria transfóbica, pois visava desqualificar e desrespeitar a identidade de gênero da vítima. A Justiça, então, acolheu a tese ministerial e condenou o réu a 1 ano de reclusão e pagamento de 10 dias-multa.

A pena restritiva de direitos foi substituída por prestação pecuniária, no valor de um salário mínimo (R$1.518,00). Foi determinado na decisão da 6ª Vara Criminal, de março deste ano, o repasse do valor para a mulher alvo da ofensa transfóbica.

Ameaça ao vivo

Dentre a população LGBTQIAPN+, são corriqueiros os relatos de violência física, muitas delas deixadas “pra lá” diante da desesperança de uma responsabilização. Não é mais assim e o Ministério Público de Mato Grosso do Sul tem os dados para provar.

No dia 26 de junho de 2024, um estudante de 31 anos dirigiu-se à residência de uma mulher trans. Agressivo, quebrou o vidro da porta da casa dela; empunhou uma faca, ameaçando-a de morte e proferiu xingamentos, todos de cunho transfóbico, como consta abaixo

“viado”

“você vai morrer”

“porque não gosta de viado”

“seu demônio maldito, você vai morrer, sua praga”

Policiais militares acionados ouviram as falas. Essas expressões são consideradas injúrias transfóbicas, pois atacaram diretamente a identidade de gênero da vítima com o objetivo de humilhá-la e ameaçá-la.

Após denúncia feita pela Promotoria de Direitos Humanos, a sentença da 2ª Vara Criminal de Campo Grande reconheceu os crimes de ameaça e injúria transfóbica, resultando em pena de mais de 3 anos de reclusão em regime semiaberto.

No documento, de maio de 2025, está consignado o entendimento dado pelo Supremo Tribunal Federal ao se manifestar sobre a necessidade de ajuste da conduta apurada ao crime descrito no artigo 2º-A da Lei nº 7.716/89, até o estabelecimento de lei para punição específica da homofobia e transfobia. Há projetos nesse sentido em trâmite.

“Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08.01.1989”, descreve a sentença.

O papel do MPMS na proteção da população LGBTQIAPN+

O resultado desses e outros processos evidencia o compromisso do Ministério Público de Mato Grosso do Sul com a promoção da igualdade e o enfrentamento da violência motivada por preconceito. A atuação proativa do MPMS — desde a investigação até a formulação de denúncias bem fundamentadas — tem sido essencial para garantir que crimes de ódio não fiquem impunes.

Além de aplicar a legislação vigente, o MPMS tem contribuído para consolidar o entendimento de que a homotransfobia é uma violação grave dos direitos humanos, que deve ser combatida com rigor e sensibilidade.

As decisões judiciais, impulsionadas pela atuação dos membros do MP, representam avanços concretos na construção de uma sociedade mais justa, plural e segura para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero ou orientação sexual.

O Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS) conta com órgãos especializados que atuam diretamente no enfrentamento à homofobia, transfobia e outras formas de violência de gênero e discriminação.

Esse é um dos trabalhos do Núcleo da Cidadania (Nuci), criado para prestar suporte técnico aos Promotores e Procuradores de Justiça com atribuição nas áreas de Direitos Constitucionais do Cidadão, Direitos Humanos, Pessoas com Deficiência, Cível, Consumidor e Idoso.

Cartilha da empregabilidade trans

Uma iniciativa recente do Núcleo, em parceria com a Subsecretaria para Políticas de Pessoas LGBTQIAPN+, do Governo do Estado, foi o lançamento da cartilha "Inclusão e Transformação". 

“O MPMS age para, a partir de diálogos com a sociedade e com empresários, fomentar a empregabilidade das pessoas trans. São muito importantes políticas nesse sentido, uma vez que as pessoas trans são marginalizadas pela sociedade, vítimas de enormes preconceitos, dificultando sua plena inserção no mercado de trabalho", declara o Promotor de Justiça Murilo Hamati Gonçalves, integrante do Nuci.

Está disponível no portal do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, o material para consulta da população em geral.

Além do Nuci, o MPMS também atua por meio da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, com atribuição para oferecer denúncias e acompanhar processos judiciais relacionados a crimes de racismo e injúria quando motivados por orientação sexual ou identidade de gênero.

Essa estrutura demonstra o compromisso institucional do MPMS com a promoção da igualdade, da dignidade humana e da justiça social, especialmente no enfrentamento à violência contra pessoas LGBTQIAPN+

Como denunciar?

Qualquer pessoa que enfrente discriminação ou violência derivada da LGBTfobia pode recorrer aos canais de denúncia.

O Disque 100 é um canal nacional que recebe denúncias de violações de direitos humanos.

Além disso, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos e o MPMS – por meio da sua Ouvidoria ou diretamente nas Promotorias de Justiça – são outras opções para denunciar discriminação e violência. Empresas devem garantir que seus funcionários conheçam esses canais e saibam como utilizá-los caso precisem.

As mudanças no
ntendimento legal
nos últimos anos:

2019 – STF reconhece a homotransfobia como crime de racismo

Caso: ADO 26 e MI 4733

Decisão: O Supremo Tribunal Federal decidiu que condutas homofóbicas e transfóbicas devem ser enquadradas como crimes de racismo, até que o Congresso Nacional edite legislação específica.

Fundamento: A omissão legislativa em criminalizar a homotransfobia viola os direitos fundamentais da população LGBTQIAPN+.

Impacto: A decisão passou a orientar o enquadramento de atos transfóbicos como racismo, com base na Lei nº 7.716/89

2021–2023 – Consolidação da aplicação do art. 140, §3º do Código Penal

• Tribunais estaduais e o STJ passaram a aplicar o artigo 140, §3º do Código Penal (injúria qualificada por preconceito) a casos de injúria transfóbica, especialmente quando a ofensa é dirigida à identidade de gênero da vítima.
• Exemplo de aplicação: uso de pronomes errados, nome de registro ou termos pejorativos com intenção de ofender.

2023 – STF equipara injúria racial a racismo

Decisão: O STF decidiu que a injúria racial é uma forma de racismo, tornando-a imprescritível e inafiançável.
Repercussão: Essa decisão fortaleceu o entendimento de que injúrias transfóbicas, quando baseadas em preconceito, também podem ser tratadas como racismo, especialmente se atingirem a coletividade ou grupo social vulnerável

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