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Em 35 anos na polícia, delegada rompeu barreiras e deixou empatia como legado

Segunda-feira, 23 Março de 2020 - 15:34 | Redação


Em meio a pandemia de coronavírus em que se determina o isolamento, a falta de proximidade com o outro, parece até contraditório contar a história de Célia Maria Bezerra da Silva. Delegada da Polícia Civil (PC) de Mato Grosso do Sul, depois de 35 anos de serviços prestados, ela se despediu neste mês de março, da cadeira de titular da 4ª DP (Delegacia de Polícia), no Bairro Moreninha II, em Campo Grande, para se aposentar.

Ao longo de sua trajetória, ela se esforçou para revelar à sociedade o lado humano do policial, com a premissa de atender a todos de maneira igualitária, sem julgamentos, dentro da imparcialidade que prepõe a lei. Por essa razão, Célia Maria figura entre as escolhidas para as reportagens especiais deste mês de Março em homenagem às mulheres.

Célia entrou na Polícia Civil aos 20 anos, em 1984, na primeira turma de escrivães depois da divisão do Estado. Na época, ser mulher em uma profissão predominantemente masculina guardava seus desafios. “Havia um certo machismo, um pensamento de que mulher não dá conta, é frágil, medrosa. Mas eu nunca quis me equiparar a um homem. Todos nós temos fragilidades, somos diferentes. Só que quando se trata do exercício da profissão, da questão do saber e agir, nós somos iguais”, observa a delegada.

Em 1999, Célia Maria foi nomeada delegada de polícia depois de prestar um novo concurso público. Entre os primeiros colocados, ela permaneceu lotada na Capital como plantonista da Metropol, onde atualmente funciona a DEPAC (Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário) do Centro.

Célia se recorda que dos sete delegados plantonistas, ela era a única mulher. “Nós usávamos uniforme como a polícia de Nova York, durante o dia era camisa branca com calça preta, no plantão noturno todos usavam preto e o delegado ainda tinha uma estrela no peito como um distintivo”.

Empatia - Servir na Metropol foi um pedido da delegada que sempre gostou do contato direto com o público. Aliás, uma das palavras que define a carreira de Célia Maria é empatia - a capacidade de compreender o outro ao se colocar em seu lugar. Principalmente, em ocorrências graves com vítimas fatais.

Uma virtude que a vida ensinou Célia a desenvolver ainda na adolescência quando, aos 16 anos, perdeu uma irmã mais nova atropelada na calçada de casa. O motorista estava embriagado e, por ironia do destino, era um ex-detento que havia deixado da prisão há algumas horas, consumiu bebida alcóolica e drogas para comemorar a liberdade e depois saiu de carro. 

 “Quando eu tive que ir à delegacia fui bem atendida por um escrivão que não se limitou a tomar meu depoimento, ele foi humano o suficiente para ouvir minhas reclamações, entender meu sofrimento e aquilo me chamou atenção”. E foi a partir da tragédia que Célia sentiu despertar em si algo que anos depois se revelaria: uma vocação.

Sua capacidade de resiliência deu a ela condições de enxergar o lado positivo da vida mesmo nas piores situações. Filha de um caminhoneiro que quase nunca estava em casa, seu primeiro exemplo de força foi a mãe que trabalhava como doméstica e cuidava de quatro filhas. Menos de dois meses depois de perder a irmã mais nova atropelada, outra filha do casal morreu de câncer, aos 24 anos. “Tudo começou a se reestruturar a partir do momento em que eu aceitei o que estava acontecendo e percebi que na pior fase da minha vida poderia interpretar as coisas de modo diferente”.

Trajetória - Ao longo de sua trajetória na função de delegada, Célia Maria deixou a 4ª DP após 14 anos para trabalhar na Corregedoria da Polícia Civil. Também foi instrutora da Acadepol/MS (Academia da Polícia Civil do Estado do Mato Grosso do Sul), ainda na época de escrivã.

Há cinco anos, a delegada retornou a DP das Moreninhas, uma extensão de sua casa.  Foi em uma das regiões mais populosas de Campo Grande, longe do centro, que Célia vivenciou situações marcantes.

“Foram tantos casos, mas jamais vou esquecer da mãe de um menino que era filho único e morreu esfaqueado em uma praça. O autor do delito foi um adolescente e eu encaminhei o caso a delegacia especializada. Mesmo assim, praticamente todo fim de expediente, ela ia até a 4ª DP para conversar comigo, me contar como era o filho dela”, comenta a delegada, finalizando que todo policial é “meio psicólogo”.

Foi a dedicação que a tornou uma “mãezona” capaz de cuidar da equipe, policiais que ela chama de “meus meninos”, e derrubar o muro ilusório que um cargo de chefia pode construir entre a autoridade policial e os outros.  Em 2017, mesmo promovida a delegada Classe Especial, Célia Maria quis continuar na 4ª DP.

Família - Como mulher, a carreira atribuiu a ela o peso das escolhas. Na época, deixar os dois filhos pequenos para assumir a rotina louca e atribulada de uma policial não foi fácil.  Inclusive, foi na polícia que Célia conheceu seu marido, o perito criminal aposentado, Amilcar Serra e Silva Netto. Juntos há 31 anos, ela fala de maneira bem-humorada que não sabe se um homem com outra profissão compreenderia os expedientes longos na delegacia, até mesmo nos fins de semana, e a ausência em casa.

Agora, há poucos dias como “aposentada”, a mulher agitada e cheia de vida com 56 anos ainda se adapta a nova rotina.  Aproveita cada momento ao lado dos dois filhos, um homem de 37 e uma jovem de 22 anos. Célia, compreende que a vida é feita de ciclos e valoriza momentos simples como almoçar em casa com a família, cozinhar (uma paixão que quase não tinha tempo para curtir).

Sobre o futuro, segundo ela, há muito a se fazer. Um dos novos projetos é se engajar mais em trabalhos voluntários e construir uma horta comunitária. “Eu me realizei enquanto policial civil e sai extremamente feliz. Aquele juramento que fazemos com as mãos estendidas na formatura de servir e proteger, eu cumpri à risca. Isso eu tenho certeza”, finalizou a entrevistada.

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