• Diretor de Redação Ulysses Serra Netto

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Descobertas da ciência nas escolas públicas

Segunda-feira, 24 Junho de 2019 - 14:14 | Redação


Um estudante de apenas 13 anos criou um experimento tecnológico que será incorporado às ações de combate ao Aedes aegypti – transmissor da dengue, chikungunya, zika – em Campo Grande (MS). O aluno está desenvolvendo sensores para monitorar armadilhas espalhadas pela cidade onde a fêmea do mosquito fará a postura dos ovos. Graças à invenção, os agentes de saúde poderão checar a situação dos recipientes através do telefone celular.

O inventor é Arthur Freire Faria, estudante do 9º ano da Escola Municipal Professora Lenita de Sena Nashif, no Bairro Centro-Oeste. A ideia surgiu durante as aulas de iniciação científica no laboratório da escola. A armadilha feita com sobras de cano PVC já foi premiada em uma feira nacional de ciências há dois anos. Porém, logo que chegou ao laboratório, Arthur decidiu aperfeiçoar o experimento dos colegas antecessores usando a tecnologia.

“Sempre gostei muito de informática e aqui no laboratório estou desenvolvendo esse experimento para ajudar os agentes de endemias. As armadilhas já tinham sido criadas e agora receberão tecnologia. Eles (agentes) não precisarão se deslocar até armadilha para conferir, o nível de água ou se ela tombou, por exemplo. O sensor estará lá fazendo a leitura e enviando informações para a central da Secretaria de Saúde que repassará ao celular dos agentes”, relata o aluno.O experimento científico de Arthur não é o único que se possa chamar de interessante dentro das escolas públicas da Capital. Há outras ideias tão boas quanto e que são concebidas e desenvolvidas da mesma forma, pelo esforço dos alunos, professores e ajuda da comunidade escolar. O Diário Digital percorreu escolas municipais e estaduais em Campo Grande e, no decorrer, desta reportagem vai destacar trabalhos científicos que chamaram atenção pela criatividade e utilidade para a vida das pessoas.

A criação de Arthur foi escolhida para abrir esta reportagem especial por estar diretamente ligada a um assunto urgente: a sobrevivência humana diante das epidemias causadas pela presença do Aedes nas cidades. Agentes de saúde já estiveram no laboratório da escola para avaliar o experimento. Eles fizeram testes preliminares e deram sugestões sobre o funcionamento do sistema. Com um clique no celular, os agentes saberão há quanto tempo a armadilha foi instalada (passados mais de 12 dias o recipiente pode se tornar um criadouro), como ela está e então decidir se precisam se deslocar até ela ou não.

Responsável pelo laboratório onde Arthur criou o sistema para as armadilhas, a professora Kátia Cilene Alves Borges, lamenta a ausência da iniciação científica na grade curricular da Rede Municipal de Ensino (Reme) da Capital. “Seria importante se tivesse. Hoje, a ciência nas escolas acontece mais pela vontade dos professores”, comenta.Conforme Kátia, os experimentos do laboratório foram possíveis graças à doação de materiais da comunidade e também da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Para que a ciência aconteça nas escolas públicas, o professores têm ido à luta em busca de parcerias e doações. Assim, com a disposição dos educadores, as grandes ideias dos jovens estudantes ganham forma nos laboratórios e prêmios em feiras estaduais e nacionais.

Estereomicroscópio caseiro - Em outro estabelecimento da Rede Municipal visitado pela reportagem, a Escola Professor Arassuay Gomes de Castro, na Vila Manoel da Costa Lima, ideias geniais também não faltam. Como já foi mencionado no exemplo anterior, o esforço dos professores é imprescindível.  Responsável pelo laboratório, o professor Rolnan Felipe Montani relata que o primeiro estereomicroscópio da escola foi ele mesmo quem fez.

“Pegamos a lente de uma lupa, um cano de PVC, material EVA e fizemos. Nas aulas de ciência, os alunos viam coração de galinha, por exemplo, neste aparelho”, relembra. Recentemente, a escola conseguiu um estereomicroscópio de verdade, mas o improvisado foi usado durante anos nas aulas de ciência.Atuando no laboratório há cinco anos,  Rolnan revela ter se surpreendido com o desempenho dos alunos em pesquisas para projetos científicos. Os experimentos que saíram do laboratório dele receberam várias premiações em feiras de ciências.

Um dos projetos em destaque é a árvore de captação da água da chuva feita com garrafas pet. “Houve testes e estudos sobre a quantidade de água a ser captada e outros detalhes, tudo muito científico”, relembra, citando o esforço das alunas do 9º ano que já deixaram a escola. A ideia é que água captada pela árvore seja usada para regar a horta da escola, mas para finalizar o experimento é necessário que se adquiram os canos que levarão o líquido até o reservatório.

O desejo de prosseguir fazendo ciência na escola é muito forte. Assim, o professor segue colocando em prática ideias possíveis de se materializar com os recursos disponíveis. Ele fez do uso do telefone na sala de aula um caminho para pesquisas científicas dentro do estabelecimento de ensino o que, segundo o professor, teve ótimos resultados e colocou o aparelho -- sempre suspeito de roubar a atenção dos estudantes -- no papel de aliado da aprendizagem dos alunos. A próxima investida de Rolnan já está definida: desenvolver trabalhos de robótica usando sucatas.A Secretaria Municipal de Educação (Semed) informou que entre as cerca de 100 escolas da Rede de Ensino, 47 estão equipadas com laboratório de ciências e outras 15 com laboratório de matemática, todos com professores responsáveis pelo espaço. A Semed admite que os laboratórios têm níveis heterogêneos em relação aos equipamentos disponíveis. Mas, há "recursos importantes para a realização de demonstrações práticas interdisciplinares, experimentações investigativas e pesquisas de iniciação científica", diz a secretaria.  

Além disso, conforme a Semed, os professores de ciências que atuam nos laboratórios e nas salas de aula participam de formações continuadas, que discutem os limites e potencialidades do uso de materiais alternativos de baixo custo, para alcançar os objetivos de aprendizagem descritos nas orientações curriculares da Rede e a possibilidade de desenvolvimento de pesquisas de iniciação científica.

"Diversas estratégias têm sido adotadas para o desenvolvimento de pesquisas de iniciação cientifica pelos professores de ciências da Rede Municipal, tais como a realização de parcerias com universidades e, até mesmo, pesquisas de iniciação científica que não utilizam equipamentos de laboratório e que se apoiam em recursos como documentos e entrevistas", explica a Semed.Desinfetante natural - Na Rede Estadual de Ensino, as escolas de tempo integral, têm uma disciplina eletiva voltada para iniciação científica. Na Escola Estadual Amélio de Carvalho Baís, no Conjunto Coophatrabalho, por exemplo, ela é ministrada todas às terças-feiras no período da tarde, com muita aplicação prática. "Há 20 opções disponíveis. O aluno escolhe a que ele quiser. Tem química, matemática, música e outras. Essa disciplina não reprova o aluno, mas a frequencia é contada. Os professores têm liberdade para colocar os projetos em prática, sendo necessário observar os recursos que a escola tem", explica o diretor da escola, Paulo Castaldeli.

Os alunos participam das atividades da disciplina eletiva desde o primeiro ano do ensino médio. O trabalho dos estudantes sob a supervisão dos professores já rendeu premiações. Um dos experimentos que recebeu destaque em feiras de ciência foi o desinfetante natural feito com casca de laranja. "Nós testamos várias concetrações da mistura de casca de laranja, água e vinagre até chegarmos a um produto realmente eficiente", relembra a professora de Química Ismênia Moura, que supervisionou o trabalho dos alunos que já concluíram o ensino médio e deixaram a escola. 

Segundo ela, o sucesso do experimento foi possível graças a uma parceria com a universidade Unigran que cedeu o laboratório e professores para os testes do produto. Docentes da universidade estavam na Feira de Tecnologia e Ciências da UFGD onde a experiência com a casca de laranja era apresentada, ainda na forma primitiva. Ali surgiu a parceria que aperfeiçoou o produto.Foi o biomédico e professor da Unigran Vinícios Soares de Oliveira quem avaliou o desinfetante na feira. "Durante a apresentação do trabalho eu percebi que existiam fragilidades na metodologia. As alunas fizeram a cultura (preparações químicas que estimulam o cultivo de microrganismos) na casa delas mesmo porque não tinham outra estrutura disponível. Então eu ofereci o laboratório de análises clínicas da universidade. Além disso, a gente cedeu uma supervisora de estágio em microbiologia. Assim, elas melhoraram o trabalho", relembra. 

Conforme Vinícios, a equipe da Unigram está à disposição para outros experimentos de escolas públicas. "Estamos abertos para receber estudantes que tenham esse tino para ciência e que precisem de reagentes, equipamentos e apoio científico, exatamente como as alunas que fizeram o desinfetante. Com apoio material e científico, elas realizaram testes usando materiais de ponta iguais aos das melhores universidades e obtiveram um produto mais fidedigno para concorrer de igual para igual com outros grupos de ciências", detalha.

Na avaliação da professora Ismênia, a iniciação científica nas escolas representa ganhos para todos, inclusive, para os professores. "A atividade acaba sendo uma formação continuada para a gente. Isso força o professor a buscar conhecimento. Já o aluno se desenvolve. A ciência nas escolas é uma educação emancipadora", enaltece. "Eu diria que a mentalidade em relação à ciência nas escolas está mudando. Antes, havia resistência até por parte de alguns diretores. Nem sempre o professor tinha apoio. Não se confiava que este tipo de atividade pudesse ser eficiente para a formação dos alunos. Se a escola te dá liberdade para trabalhar, tudo é diferente", completa.Na Amélio Carvalho Baís, a ciência pulsa em muitas áreas do conhecimento. Apaixonados por música, os estudantes do segundo ano Lucas Vinícios Wellier, 15, e Felipe Gonçalves, 16, desenvolveram o projeto 'A melodia do conhecimento e os efeitos psicofísicos no processo de aprendizado' durante a disciplina eletiva. "Fazendo pesquisa e experiência com os alunos, a gente constatou que a música pode ser usada para melhorar a aprendizagem. O estilo clássico faz o aluno absorver mais o conteúdo. Já o funk e o rock atrapalham", afirma Lucas. "Nosso estudo agora vai além da estimulação. Queremos saber de que forma a música ouvida pode influenciar o comportamento dos estudantes", acrescenta Felipe.

No laboratório de Química, os alunos ensaiam para apresentar um espetáculo, o Show da Química. "A ideia era tornar a matéria interessante. Então a gente trabalha com reações químicas que tenham efeitos visuais e apresentamos de forma teatral", explica a professora Lis Regiane Vizoli Favorin, enquanto os alunos aplicam um produto que faz as letras sem cor da cartolina ficarem rosadas. "A fenolftaleína vai indicar se o meio é ácido ou básico. Como ficou rosa, vimos que ele era básico", demonstra um estudante na presença da reportagem.

Por enquanto, segundo a Secretaria Estadual de Educação (Sed), a disciplina eletiva faz parte apenas das escolas de tempo integral do ensino médio, sendo 27 em todo Estado.

Outra escola estadual que encontrou o caminho para fazer ciência sem grandes custos, foi a Teotônio Vilela, na Vila Universitária. Desde 2015, o Clube de Ciências estuda plantas exóticas. Neste ano, a aluna Thailleny Rezende, de 16 anos, foi selecionada para participar da maior feira de ciências do mundo nos Estados Unidos, a Intel ISEF, graças a sua pesquisa sobre os impactos da Leucena (Leucaena Leucocephala) – uma planta do México – à flora do Cerrado sul-mato-grossense. A planta libera substâncias que afetam árvores e hortaliças. “Encontramos, por exemplo, agricultores tiveram que prejuízos na plantação de alface e embaúbas que tiveram o desenvolvimento prejudicado”, explica a estudante.

Nação sem ciência é perdedora  - A professora Iara Gutierrez Cuellar, pedagoga e especialista em multiletramentos e trabalhos autorais, e membro da Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS), concedeu vídeo-entrevista ao Diário Digital na qual fala sobre a importâcia da iniciação científica nas escolas públicas. A pedagoga também comenta as dificuldades dos educadores e ainda as perdas para o país que não investe em ciência desde a base. "Perde muito. No futuro, teremos um exército de não preparados", alerta ela. Confira no vídeo abaixo:

PIBIC Jr - Outra porta de entrada para iniciação científica dos estudantes do ensino médio é o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (PIBIC) Júnior desenvolvido em universidades. Na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), por exemplo, 50 alunos de escolas públicas e privadas participam dos projetos supervisionados por 40 professores, a maioria com doutorado. "Neste processo, há alunos da graduação, mestres e doutores, todos trabalhando juntos com os alunos dos ensino médio, assim, a interação acontece", explica a coordenadora do PIBIC na UCDB Carina Elisei de Oliveira.

Segundo ela, 10 alunos do programa obtiveram bolsas, número que ela torce para aumentar nos próximos semestres. O valor da bolsa é de R$ 100, concedida por 12 meses. A coordenadora trabalha para evitar que os jovens talentos desistam do programa. "A gente mobiliza os órgãos públicos para que eles não tenham gastos com vale transporte, por exemplo, e assim possam permenecer nos projetos", destaca.

Aluno do 9º ano do Colégio Dom Bosco Juan Fernandes, 13, se interessa por novos conhecimentos e, incentivado por professores, entrou no PIBIC da UCDB. Ele está trabalhando no projeto de criação e um site para divulgação de conteúdo científico. "Estou na fase de levantamento bibliográfico, criação de banco de dados, estou montando a teoria", detalha o estudante. O orientador dele o doutorando Mário Márcio Cabreira elogia a aptidão dos alunos para iniciação científica. "Eles são dinâmicos, receptivos, disciplinados e não têm medo da tecnologia", cita.Thiago Poganski de Souza, 16 anos, chegou ao PIBIC encaminhada pelo Centro de Altas Habilidades/Superdotação (CEAM) da rede estadual. Ele se uniu ao projeto de visão computacional que cria soluções para o agronegócio dentro da universidade."Sempre achei a área interessante e quis participar. Considero relevante usar a ciência para garantir a sustentabilidade agropecuária. Usando a tecnologia poderemos fazer as máquinas trabalhare melhor, sendo eficientes e sustentáveis", diz.

O coordenador do projeto é o professor Celso Soares da Costa, doutorando do Programa de Ciências Ambientais no qual atua com inovações para o agronegócio. "Uma das linhas de estudo diz respeito à visão computacional na área da piscultura, por exemplo. Estamos desenvolvendo um sistema para contagem de alevinos, através da visão computacional. Atualmente, a contagem é mensurada por aproximação; o uso desse novo sistema trará números mais precisos", conta.

Conforme a professora Carina Elisei, a coordenadora do PIBIC na UCDB, para integrar o programa, o aluno do ensino médio precisa procurar a coordenação da escola onde estuda e se certificar de que o estabelecimento está vinculado à universidade. Se tiver, os próprios professores podem fazer o encaminhamento. Os alunos passam por seleção antes de serem aceitos no programa. Mais informações podem ser obtidas pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone  (67) 3312-3615.

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